O princípio da publicidade no Direito Processual: uma visão comparativa (primeira parte)

O presente tema teve como mote as questões levantadas num processo judicial amplamente divulgado pela comunicação social em Portugal: a Operação Marquês. No âmbito deste processo, a decisão instrutória foi fundamentada através de um extensíssimo despacho de 6.728 páginas, cuja apresentação ao público demorou mais de três horas.

Este foi um momento em que o princípio da publicidade no processo judicial surgiu revestido de uma importância considerável, pelo seu papel de ligação entre os cidadãos em geral e o próprio processo. A partir daqui, somos levados a pensar na configuração daquele princípio, em especial, no âmbito do processo civil e nas respetivas diferenças face ao processo penal.

Pretende-se, portanto, proceder a uma visão comparativa entre o processo civil e o processo penal quanto aos seguintes aspetos: por um lado, e em primeiro lugar, devemos analisar o regime da publicidade (e suas especificidades); por outro lado, devemos, simultaneamente, tomar como referência a razão de ser deste princípio.

A origem deste princípio remonta ao século XIX como consequência do desenvolvimento do pensamento liberal, enquanto garantia de imparcialidade no seio da Justiça e espelho da conquista do poder pelo Povo que, desta forma, viu a sua confiança no sistema judicial renovada(1). Atualmente, este princípio é entendido, também, como “uma garantia de transparência da justiça e, consequentemente, um modo de facilitar a fiscalização da legalidade do procedimento”(2), tendo, portanto, relevância no âmbito da forma dos atos processuais.

O princípio da publicidade no Direito Processual: quando vigora e interesses protegidos

Salvo concretas exceções, como a ação direta ou a legítima defesa (arts. 336.º e 337.º do Código Civil), os meios de justiça privada encontram-se vedados (art. 1.º do Código de Processo Civil (doravante, CPC), pelo que o sistema de Justiça é público (a Justiça faz-se nos Tribunais e em nome do Povo – art. 202.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, doravante, CRP). O processo vai precisamente funcionar enquanto elemento concretizador desse sistema de Justiça público, pelo que, por regra, é também ele, na sua globalidade, público (art. 163.º, n.º 1 do CPC; havendo reforço desse mandamento quanto à audiência final no art. 606.º e no art. 25.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário(3).

Independentemente de tal arrumação sistemática, certo é que o princípio é estruturante no processo civil, tanto mais que tem assento constitucional (art. 206.º da CRP), sendo alvo da atenção de importantes diplomas internacionais(4).

O princípio da publicidade do processo concretiza-se num direito de acesso ao processo que se subdivide na faculdade de obtenção de informação processual escrita – o direito de exame e consulta do processo (caso dos articulados, despachos e requerimentos) e o direito de obtenção de cópias ou certidões pelas partes, pelos mandatários e “por quem nisso revele interesse atendível” (art. 163.º, n.º 2 e art. 170.º, n.º 1 do CPC) – e na faculdade de obtenção de informação processual não escrita (a que é produzida no processo por via oral, designadamente os depoimentos e as declarações em sede de audiência final).

O requisito do interesse atendível não existe na audiência final, sendo esta acessível, por princípio, (também) aos “desinteressados” na causa.

Subjacente ao princípio da publicidade está uma ideia de tutela de interesses individuais, privados, pretendendo-se conferir uma garantia às partes quanto à existência de um tratamento imparcial, de forma a evitar atos e decisões judiciais arbitrárias contra uma ou ambas as partes(5). Por outro lado, promove-se a confiança dos cidadãos na Justiça ao permitir-se o controlo público da sua administração: se os Tribunais administram a justiça em nome do povo (art. 202.º, n.º 1 da CRP), sempre se imporia que este – o Povo – “disponha de um meio que lhe permita aferir se a realização de justiça obedece aos parâmetros jurídicos (substantivos e adjetivos) geral e abstratamente desenhados em termos comunitariamente aceites”(6). Trata-se daquilo a que TEIXEIRA DE SOUSA apelida de “avaliação democrática do exercício da jurisdição”(7).

O imperativo de publicidade não é, no entanto, absoluto: casos há em que deve ser temperado em face de outras necessidades. O art. 206.º da CRP, referindo-se à audiência final, permite a confidencialidade quando esteja em causa a proteção da dignidade das pessoas, da moral pública e do bom funcionamento do Tribunal. O CPC, por seu turno, procede a uma distinção entre a confidencialidade do processo, em geral, e a da audiência final: quanto à audiência, o art. 606.º, n.º 1 repete o mandamento constitucional (salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública ou garantia do normal funcionamento da audiência); em relação aos autos, o art. 164.º refere-se à salvaguarda do bom funcionamento do Tribunal e do processo (caso dos processos cautelares pendentes), à moral pública, à dignidade das pessoas e à intimidade da vida privada ou familiar (v. g., processos de divórcio ou de impugnação da paternidade)(8).

Conclusão

Ao longo deste texto, houve a possibilidade de explorar o modo de funcionamento do princípio da publicidade no âmbito do processo civil, concluindo que o mesmo se encontra ao serviço do conjunto dos interesses privados dos sujeitos, sem prejuízo da existência de um do interesse público associado ao controlo do bom funcionamento do sistema de justiça.

O mesmo acontece no processo penal, na medida em que o segredo de justiça (e, por contraposição, o princípio da publicidade) está ao serviço de um quadro de interesses, públicos e particulares, que se procuram salvaguardar no decorrer do processo.

Num próximo texto, far-se-á uma análise mais detalhada sobre o modo de funcionamento do princípio da publicidade no âmbito do processo penal, que nos permitirá explicar a razão de ser das diferenças ao nível do princípio da publicidade no direito processual.

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Sobre os autores:

O João Duarte é aluno do 4º ano da Licenciatura em Direito na NOVA School of Law. Trabalhou enquanto Coordenador do Gabinete Pedagógico da NOVA School of Law Students’ Union durante todo o ano de 2020, tendo organizado cursos e workshops nas áreas do Direito Processual e Profissões Jurídicas, entre outras. Frequentará, a partir de setembro, o Mestrado em Direito Forense e Arbitragem na NOVA School of Law.

A Sara Neto está atualmente no 4° ano da licenciatura de Direito na NOVA School of Law. No próximo ano letivo – 2021/2022 – irá ingressar no mestrado Forense e Arbitragem, na mesma Faculdade. Ela adquiriu experiência ao nível prático na área do Direito através de um estágio realizado durante o verão de 2020 num escritório de advogados. Além do mais, a Sara foi ainda membro da NOVA Law Students Union, também em 2020, enquanto colaboradora do Departamento de Ação Social.

A Francisca Marques de França é aluna do quarto ano da licenciatura na NOVA School of Law. Atualmente investigadora na NOVA Refugee Clinic – Legal Clinic (Linha de Investigação Migração e Orientação Sexual). Recentemente, foi admitida no Mestrado em Direito Forense e Arbitragem da NOVA School of Law. As suas principais áreas de interesse são a área do Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Processual Civil Declarativo e Executivo, bem como do Direito Civil.

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(1) GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Noções Gerais, Elementos do Processo Penal, Vol. I, Lisboa, Verbo, p. 102.

(2) Ibidem, p. 21.

(3) Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.

(4) Art. 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, art. 47.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e art. 14.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

(5) O objetivo, como nos indica LEBRE DE FREITAS, é “evitar o arbítrio do secretismo e permitir o controlo público da boa administração da justiça” (JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 3.ª Ed., 2013, p. 143).

(6) LUCINDA DIAS DA SILVA, “Publicidade e Segredo em Processo Civil – Que Fronteiras?”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 80, Vol. III/IV, p. 637.

(7) MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Processo Civil, Lex, Lisboa, 1993, p. 55.

(8) Como se pode ver, as duas normas processuais apontadas não coincidem exatamente, pois que a exigência de proteção da intimidade da vida privada ou familiar não se aplica à audiência final, o que pode gerar problemas: como alerta LUCINDA DIAS DA SILVA, corre-se o risco de permitir “que se venha a tornar pública, numa fase processual, a informação que, numa fase anterior, se classificou como sigilosa por razões que justificam a manutenção dessa qualidade ao longo de toda a tramitação processual” (L. DIAS DA SILVA, “Publicidade e Segredo…”, cit., p. 665.)