Exoneração do Passivo Restante: o Presente e o Futuro

A exoneração do passivo restante é um regime instituído em Portugal em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. O regime da exoneração do passivo restante consiste, “na afetação, durante certo período de tempo, após o encerramento do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por esta via, durante esse período” [1] (cfr. artigos 235.º, 239.º, n.º 2 e 245.º, n.º 1 do CIRE).

A exoneração do passivo restante proporciona uma segunda oportunidade ao devedor. Ou seja, a este é facultada a possibilidade de (re)começar do zero, sendo liberado das suas obrigações restantes, depois de “aprendida a lição”, por via da afetação de rendimentos durante um certo período de tempo. Se este for o caso, ao devedor é concedida a hipótese de retomar, sem constrangimentos, a sua vida normal, e inclusive, até o exercício da uma atividade económica e empresarial, se essa for a sua vontade[2].

A Professora Catarina Serra identifica, dois modelos para a exoneração do passivo restante: o modelo de fresh start e o modelo de earned start. O modelo de fresh start baseia-se na ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas tem lugar no decurso do processo de insolvência. Assim, restem ou não dívidas por pagar, no final deste processo, é dada ao devedor a benesse de retomar a sua vida, sem inibições. Por sua vez, o modelo de earned start, baseia-se na ideia de que o devedor não deve ser, automaticamente e em qualquer circunstância, exonerado das suas obrigações no final do processo de insolvência, uma vez que, em princípio, os contratos são para se cumprir (princípio pacta sum servanda) e do cumprimento desta máxima depende a segurança que os cidadãos esperam do sistema jurídico. Daqui decorre o entendimento de que o devedor terá de efetivamente merecer que lhe seja concedido o beneficio de uma segunda oportunidade. Assim, este terá de passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afetada ao pagamento das dívidas remanescentes e só findo este período, e tendo ficado provado que o devedor merece a exoneração (cfr. artigos 243.º e 244.º do CIRE), lhe será concedido o beneficio[3]. Este é indiscutivelmente o modelo adotado pela legislação portuguesa, e muito bem, diria eu.

Estabelece o atual artigo 235.º do CIRE, que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência[4] que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (…)”.

Assim, o devedor que tenha, em momento oportuno, apresentado um pedido de exoneração do passivo restante (cfr. artigo 236.º, n.º 1 do CIRE), poderá ver o seu pedido aceite e a exoneração do passivo restante efetivamente concedida, mediante a verificação de todos os pressupostos a que se refere o artigo 237.º do CIRE.

Desde logo, e para que o pedido de exoneração seja aceite, importa que não se verifique nenhuma causa de indeferimento liminar, entre as quais poderemos destacar, a título de exemplo as seguintes:

  • o devedor tenha “beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência” (cfr. artigo 238.º, n.º 1, al. c) do CIRE), esta que é uma solução de “quarentena” que visa mitigar “abusos de exoneração”, pois é evidente que a concessão de exonerações ilimitadas a um certo devedor é uma situação indesejada e descaracterizadora do espírito do regime.
  • o devedor tenha “incumprido o dever de apresentação à insolvência, ou caso este não exista, se tenha abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores e sabendo, ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica” (cfr. artigo 238.º, n.º 1, al. d) do CIRE), requisito este que é um estímulo à diligência processual do devedor, que poderá permitir um início mais atempado do processo de insolvência, ajudando a atenuar uma das maiores preocupações do legislador: o chamado “timing problem”[5].
  • existam fortes indícios da existência de culpa do devedor na situação de insolvência (cfr. artigo 238.º, n.º 1, al. e) do CIRE). O que bem se entende, uma vez que a exoneração do passivo restante é um efeito que é evidentemente favorável ao devedor e, portanto, deste se espera uma atitude coerente, proativa e honesta.

Se o pedido de exoneração for admitido, é proferido despacho inicial que determina que “durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado período da cessão, o rendimento disponível[6] que o devedor venha a auferir se considera cedido a (…) fiduciário” (cfr. artigo 239.º, n.º 1 e 2 do CIRE).

Durante o período de cessão a que está adstrito, o devedor encontra-se vinculado a uma série de obrigações (cfr. artigo 239.º, n.º 4 do CIRE), entre as quais podemos destacar as de exercer uma profissão remunerada ou diligentemente procurar uma, não ocultar ou dissimular rendimentos que aufira ou não criar vantagens especiais para determinados credores. Sendo a violação dolosa destas obrigações, entre outras, causa para a cessão antecipada do procedimento de exoneração ou para a sua revogação (cfr. artigo 243.º, n.º 1, al. a) e artigo 246.º, n.º 1 do CIRE).

Durante o período de cessão, o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los e afeta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, aos pagamentos pela lei estabelecidos (cfr. artigo 241.º, n.º 1 do CIRE) [7].

Não havendo lugar à cessão antecipada do procedimento de exoneração, findo o período de cessão, o juiz decidirá pela concessão da exoneração do passivo restante, salvo quando se verifique um dos fundamentos que teria permitido a cessação antecipada do procedimento (cfr. artigos 243.º e 244.º do CIRE). Aqui se recuperando as considerações sobre o “merecer” que pressupõe o modelo de earned start.

Ana Filipa Conceição tem uma abordagem interessante ao instituto da exoneração do passivo restante, dizendo que este tem um “pendor moralizador do sistema”. Isto porque considera que quando falamos sobre exoneração do passivo restante, falamos em dois tipos de entidades: falamos dos devedores de boa fé que precisam de ser protegidos e precisam de uma segunda oportunidade e dos credores que precisam de ser ressarcidos, mas, simultaneamente também falamos da sociedade que pode achar chocante que pessoas que contraíram dívidas vejam essas dividas perdoadas sem mais e, que, portanto, carece de alguma proteção a este nível[8]. O que, novamente bem se entende, uma vez que, sempre que a exoneração do passivo restante prossiga, os custos da exoneração são integralmente transferidos para os credores, o que se compreende não ser fácil de aceitar[9]. Razão pela qual este regime almeja equilibrar todas as posições. Por um lado, o próprio carácter de “perdão de dívidas” do regime protege evidentemente o devedor, este que é também protegido, por exemplo, através da limitação dos rendimentos disponíveis (cfr. artigo 239.º, n.º 3 do CIRE) ou da limitação do próprio período de cessão (cfr. artigo 235.º e 239.º, n.º 2 do CIRE). Por outro lado, o regime protege o credor e, consequentemente a “sociedade”, através da imposição de várias obrigações a que o devedor está adstrito (cfr. artigo 239.º, n.º 4 do CIRE), bem como através dos mecanismos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (cfr. artigo 238.º do CIRE), de cessação antecipada do procedimento de exoneração, da recusa da exoneração ou da revogação da exoneração (cfr. artigos 243.º, 244.º e 246.º do CIRE).

Ora, em meados de julho de 2019, entrou em vigor a Diretiva n.º 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, que, entre outros objetivos, visa colmatar as diferenças entre as legislações no que toca exatamente ao perdão de dívidas (cfr. artigos 20.º e 21.º).

E é em realização deste propósito da Diretiva n.º 2019/1023 que a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, dá corpo normativo a um conjunto de medidas que visam agilizar o processo de insolvência, entre as quais a redução do período de cessão no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, que agora tratamos, permitindo assim aos devedores, pessoas singulares, o acesso mais rápido a uma segunda oportunidade[10].

Assim, a atual redação do artigo 235. º do CIRE prevê que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”. A Proposta de Lei n.º 115/XIV/3.ª veio propor que este artigo passasse a ter a seguinte redação: “se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos 30 meses posteriores à declaração de insolvência”. Mais tarde, a proposta de texto de substituição, apresentada pelos grupos parlamentares do PS e do PSD, veio propor a substituição de “30 meses” para 3 anos no preceito anteriormente referido. Nos termos da Lei n.º 9/2022, a redação do artigo 235.º passa a ser a seguinte: “se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sabre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capitulo” (destaques nossos).

A Lei n.º 9/2022 propõe ainda inovar e aditar o artigo 241.°-A, com a epígrafe “liquidação superveniente”. De acordo com esta proposta, uma vez finda a liquidação do ativo do devedor e encerrado o processo de insolvência nos termos do artigo 230.°, n.º 1, al. e) do CIRE (ou seja, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante a que se refere o artigo 237.º, al. b) do CIRE), “caso ingressem bens ou direitos suscetíveis de alienação no património daquele [devedor], o fiduciário deverá, com prontidão, proceder à sua apreensão e venda”, sendo para o efeito aplicável o disposto no título VI do CIRE, que respeita à administração e liquidação da massa insolvente, com as devidas adaptações. Este é um aditamento que visa reforçar a proteção do credor que pretende ser ressarcido, bem como, em simultâneo, reforçar a lisura e integridade do próprio regime da exoneração do passivo restante.

Por outro lado, também inovatoriamente e em linha com o espirito da Diretiva n.º 2019/1023, é proposto o aditamento do artigo 242.º-A, que, resumidamente, permite ao juiz prorrogar o período de cessão, por uma única vez, até ao máximo de 3 anos, sempre que haja incumprimento, pelo devedor, das obrigações a que está adstrito (cfr. artigo 239.º, n.º 4 do CIRE), prejudicando com este facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência e caso o juiz conclua pela “existência de uma probabilidade séria de cumprimento (…) das obrigações” no período suplementar, concedendo-lhe, assim, uma derradeira oportunidade[11].

De facto, as diferenças entre os Estados-Membros no que diz respeito ao perdão de dívidas traduzem-se em custos adicionais a suportar pelos investidores quando avaliam o risco de os devedores incorrerem em dificuldades financeiras. Assim, importa reduzir estes custos, bem como mitigar o fenómeno do Forum Shopping entre as diferentes legislações, uniformizando-as dentro do que é possível e apropriado a cada realidade.

 

Sobre a autora:

Ana Catarina Carvalho é licenciada em Direito pela Nova School of Law e frequenta, no presente momento, o Mestrado em Direito Forense e Arbitragem na mesma instituição. A aluna estagiou num Tribunal Judicial onde desenvolveu um especial interesse por investigar o impacto real do Direito na vida dos cidadãos. As suas principais áreas de interesse são Direito Civil, Direito Processual Civil Declarativo e Executivo, bem como o Direito Penal e Direito Processual Penal.

 

[1] SERRA, Catarina. Lições de Direito da Insolvência. 1ª edição, Lisboa: Almedina, 2018. ISBN: 9789724091433. p. 558.

[2]Rigorosamente, a exoneração qualifica-se como uma (nova) causa de extinção de obrigações – extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado no Código Civil (cfr. artigos 837.º a 874º)” in SERRA, Catarina. Lições de Direito da Insolvência. 1ª edição, Lisboa: Almedina, 2018. ISBN: 9789724091433. p. 561.

[3] SERRA, Catarina. Lições de Direito da Insolvência. 1ª edição, Lisboa: Almedina, 2018. ISBN: 9789724091433. p. 559.

[4] Vejamos que o perdão da dívida só tem em vista os créditos sobre a insolvência e, mesmo quanto a estes, não todos (cfr. artigo 245.º, n.º 2 do CIRE), não abrangendo os créditos por alimentos, as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e os créditos tributários e da segurança social.

[5] SERRA, Catarina. Lições de Direito da Insolvência. 1ª edição, Lisboa: Almedina, 2018. ISBN: 9789724091433. p. 562.

[6] Estabelece o artigo 239.º, n.º 3 do CIRE que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz, e do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional e para outras despesas ressalvadas pelo juiz.

[7]  Mais, é imposto ao Tribunal o “acompanhamento, pelo menos com cadência anual, do modo como se vem processando o cumprimento das obrigações legais por parte do devedor e, bem assim, do modo como se vem processando o cumprimento das obrigações legais por parte do fiduciário, a quem cabe a liquidação, ou seja, a afetação anual dos montantes recebidos aos pagamentos (cfr. artigos 240.º, n.º 2 e artigo 61.º, n.º 1 do CIRE)” in Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30-06-2021 (Isabel Imaginário). Processo n. 1425/13.7TBFAR.E2. Disponível em: www.dgsi.pt.

[8] Conferência “O Plano de Recuperação e Resiliência para a Justiça Económica”. Lisboa, 2021. Disponível em: https://justica.gov.pt/Conferencia-O-Plano-de-Recuperacao-e-Resiliencia-para-a-Justica-Economica

[9] SERRA, Catarina. Lições de Direito da Insolvência. 1ª edição, Lisboa: Almedina, 2018. ISBN: 9789724091433. p. 563.

[10] Apesar de a Diretiva n.º 2019/1023 se focar nos empresários (“pessoa singular que exerça uma atividade comercial, industrial ou artesanal, ou profissional por conta própria” – cfr. artigo 2.º, n.º 1- 9), não deixa de admitir o alargamento do regime do perdão de dívidas “às pessoas singulares insolventes que não sejam empresários” (cfr. artigo 1.º, n.º 4). Ora, foi precisamente esta a opção do legislador nacional, indo de encontro ao regime que já se encontrava previsto no CIRE a este propósito.

[11] Apesar de ser evidente que, no limite, o período máximo de cessão, pode atingir os 6 anos, essa possibilidade resulta da própria Diretiva n.º 2019/1023, que prevê no seu artigo 23.º, n.º 2, al. a) uma possível derrogação ao regime nela previsto (cfr. artigos 20.º e 21º), permitindo aos Estados-Membros fixar um prazo mais longo para o perdão da dívida “se o empresário insolvente tiver cometido violações consideráveis de (…) qualquer outra obrigação legal destinada a salvaguardar os interesses dos credores, nomeadamente a obrigação de maximizar os rendimentos dos credores”.