Bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica: uma visão do século XXI

Estamos perante um conceito jurídico indeterminado: o que são – ou quais são – os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica para efeitos de interpretação da norma do artigo 737º, nº 3 do Código de Processo Civil? A expressão legal resulta num espaço aberto dentro do qual tem funcionado, em ordem ao seu preenchimento, a apreciação do julgador norteada por uma análise casuística.

A conceção tradicional repartida entre Doutrina e Jurisprudência tem interpretado o conceito de forma a extrair dele a salvaguarda de um mínimo de sobrevivência condigna[1] em favor do executado, isto é, dos seus “interesses vitais”, funcionando, nessa tarefa, enquanto bitola, um “padrão mínimo de dignidade social”[2].

Desta interpretação surgiram uma série de decisões no sentido de que ficam fora do conceito de imprescindibilidade para uma economia doméstica a televisão, o frigorífico, ou a máquina de lavar[3], precisamente “porque conferem comodidade mas estão acima do mínimo indispensável”[4].

Se assim era nos anos 80 e 90 do século passado, parece-nos que aos dias de hoje, sobretudo quanto aos dois últimos itens, estamos perante objetos perfeitamente integrados naquilo que é a economia doméstica moderna. O facto é que, para além de uma letra da lei que era, com efeito, mais restrita ao tempo das decisões em causa[5], a desadequação de tais decisões ao paradigma atual explica-se com o desenvolvimento socioeconómico e cultural entretanto ocorrido na sociedade portuguesa, que tornou tão banais quanto essenciais na dinâmica quotidiana doméstica dos portugueses bens como o frigorífico, a máquina de lavar roupa e a televisão. Se os dois primeiros se afiguram indispensáveis aos dias de hoje enquanto modo fácil, seguro e rápido de conservar comida e lavar o vestuário, a televisão é um vital modo de difusão de informação e, bem assim, de entretenimento.

Parece-nos, por isso, natural que à luz do padrão mínimo de dignidade social, conexo, como é bom de ver, com a ideia de dignidade humana (que aqui impede o ataque a bens que, uma vez penhorados e executados, colocariam o executado numa situação de indignidade), estes bens sejam mais recentemente considerados como impenhoráveis[6].

Há, todavia, quem vá mais longe, defendendo que este mesmo critério “mínimo” deve alargar-se a outras necessidades essenciais das famílias modernas não mencionadas até aqui[7]. Está a pensar-se, sobretudo, nos bens relacionados com as novas tecnologias, designadamente o computador e o router de acesso à internet[8].

Vejamos: em 2017, em 71,5% dos agregados domésticos privados existia, pelo menos, um computador (contrastando com os 10,1% duas décadas antes)[9]; naquele mesmo ano, os agregados domésticos privados com ligação à internet em casa ascendiam a 84,5%, contra os 15,1% em 2002[10]; em 2019, mais de 3 milhões e 600 mil pessoas eram assinantes de internet, contra as 88 mil em 1997[11]; os indivíduos com 16 ou mais anos que utilizam computador e Internet (em percentagem do total de indivíduos) chegavam, em 2017, a 66,8%, contra 27,4% em 2002[12]. Resulta claro dos números apresentados que as telecomunicações adquiriram relevância e caráter de permanência na economia doméstica de uma maioria avassaladora.

A essencialidade destes bens parece-nos estar à vista: são de utilização diária, por vezes constante, sendo essenciais ao estudo de muitos jovens e substituindo muitas vezes a televisão ou os jornais enquanto meio de obtenção de informação e também de entretenimento, tudo isto tendo por base o atual mundo globalizado, no qual por definição domina a rápida e fácil comunicação e intercâmbio de informação[13]. O conceito de economia doméstica não se pode, pois, confinar ao que seja um mero local de refeições e descanso.

Daqui decorre que não nos choca o entendimento – sempre casuístico, claro – de que, à luz do padrão mínimo de dignidade social, o computador é um bem imprescindível a qualquer economia doméstica, daí se extraindo a sua impenhorabilidade.

O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) pôde já dar um primeiro passo nesse mesmo sentido, por ocasião do Acórdão de 16.11.2010 (Rel. M.ª João Areias), que considerou (ainda que reconhecendo possibilidade de discussão da sua posição) o computador enquanto bem imprescindível a qualquer economia doméstica, com o argumento de que  o conceito “tem variado ao longo da história, de acordo com o grau de desenvolvimento social, cultural e económico, e o padrão das necessidades essenciais para uma família deve aferir-se em função do nível sócio-cultural e económico de qualquer família média portuguesa” (itálico nosso)[14]. É este um critério distinto, ainda minoritário, que aponta atenções para as condições sociais domésticas médias, sendo apoiado na Doutrina designadamente por LOPES DO REGO[15], que indica que “o padrão de dignidade deverá aferir-se perante as condições sociais e económicas “médias”, sendo impenhoráveis os bens de que não seria razoável privar o executado e o seu agregado familiar, por ser inexigível privar o devedor de tais bens ou utensílios para assegurar a realização do interesse do credor”. Este critério parece-nos mais viável porque mais ligado à realidade sociológica e menos estrito que o critério “mínimo” (que, por isso mesmo, se mostra mais reativo do que proactivo à evolução socioeconómica e propenso a privilegiar a manutenção de um modo de vida austero, “mínimo”[16]) e permite de forma pacífica a inclusão do computador, porque se mostra indiscutível a importância deste bem na economia doméstica média dos portugueses – como bem se demonstrou desde logo por via dos dados estatísticos.

De importante nota é a mutabilidade que o TRL refere como característica do conceito – recuperando a ideia inicial do texto, a imprescindibilidade a qualquer economia doméstica é um conceito indeterminado que, por isso mesmo, é plástico, prestando-se a modificações ou aditamentos no seu âmbito de aplicação consoante, sobretudo, o momento histórico-temporal no qual o julgador profere a sua decisão.

É por isso que são de aplaudir decisões que alarguem o conceito designadamente aos computadores, em consonância com o rápido desenvolvimento científico, tecnológico e social que se refletiu na entrada destes novos equipamentos na economia doméstica portuguesa, sendo já banais e, mais do que isso, necessários e mesmo essenciais (imprescindíveis) ao modo de vida doméstico atual[17].

Sobre o autor:

João Duarte holds a bachelor’s degree in Law from NOVA School of Law and is currently a first-year Litigation and Arbitration Master’s Student at the same Faculty. He worked as Coordinator of the Pedagogical Office of the Students’ Union of NOVA School of Law, having organised scientific courses, among others, in the areas of Procedural Law and legal professions. He was President of the General Assembly of the same Association in 2021. João also had contact with the world of Law, having worked as a summer intern at PLMJ.

[1] Expressão utilizada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 649/99, de 24.11.1999 (Rel. Bravo Serra).

[2] LEBRE DE FREITAS, A Ação Executiva – À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª Edição, Gestlegal, 2017, pp. 250-251. Também RUI PINTO, Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013, p. 506, segundo o qual a regra da imprescindibilidade é avaliada “objetivamente segundo um padrão elementar, mas não marginal, conforme o mínimo da dignidade social”, sendo apenas “excluídos da penhora os bens absolutamente indispensáveis a uma economia elementar”.

[3] O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04.04.1989 considera penhoráveis a televisão, o frigorífico e a máquina de lavar; o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.07.1985 considera penhoráveis o frigorífico e a televisão.

[4] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 4.4.1989.

[5] Que se focava, sobretudo, mas não só, nos instrumentos de cozinha destinados à alimentação (veja-se a utilização do termo “utensílios”): artigo 822º, nº 1, al. f) do CPC1961 – “Além das coisas inalienáveis e dos bens isentos de penhora por disposição especial, não podem, no entanto, ser penhorados: os utensílios imprescindíveis a qualquer economia doméstica”.

[6] Veja-se, a título de exemplo, a decisão do Tribunal da Relação do Porto de 28.06.1999 (Rel. Antero Ribeiro) que entende o frigorífico, já, enquanto bem imprescindível. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.11.2010 (Rel. M.ª João Areias) considera a televisão e o frigorífico bens imprescindíveis (mas não já a máquina de secar roupa).

[7] Como entende ANA SOFIA FERREIRA ROCHA, “Os limites da penhorabilidade e os meios de defesa legalmente previstos quando violados”, Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra, 2017, pp. 50-51: “considerar atualmente, como bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica, apenas a cama, o fogão e frigorífico é violar o princípio da dignidade humana na sua conceção atual, porque nos dias de hoje, perante uma sociedade bastante mais evoluída, as necessidades básicas de uma família média serão muito para além deste objetos”.

[8] Op. cit., loc. cit., “O conceito de bens imprescindíveis à economia doméstica terá assim que ser necessariamente alvo de uma concretização atualizada e adaptada à nova realidade e aquilo que se entende o que é hoje a vida familiar e o conceito de vida digna, harmonizando-se assim tal conceito com aquilo que são as atuais necessidades existentes numa sociedade moderna e cada vez mais dependente, por exemplo, da tecnologia”.

[9] Dados PORDATA, “Agregados privados com os principais equipamentos domésticos (%)” e “Agregados domésticos privados com computador, com ligação à Internet e com ligação à Internet através de banda larga (%)” disponíveis em: https://www.pordata.pt/Portugal/Agregados+privados+com+os+principais+equipamentos+domésticos+(percentagem)++-191 e https://www.pordata.pt/Portugal/Agregados+domésticos+privados+com+computador++com+ligação+à+Internet+e+com+ligação+à+Internet+através+de+banda+larga+(percentagem)-1158

[10] Dados PORDATA, “Agregados domésticos privados com computador, com ligação à Internet e com ligação à Internet através de banda larga (%)”, disponíveis em: https://www.pordata.pt/Portugal/Agregados+domésticos+privados+com+computador++com+ligação+à+Internet+e+com+ligação+à+Internet+através+de+banda+larga+(percentagem)-1158

[11] Dados PORDATA, “Assinantes do acesso à Internet”, disponíveis em: https://www.pordata.pt/Portugal/Assinantes+do+acesso+à+Internet-2093

[12] Dados PORDATA, “Indivíduos com 16 e mais anos que utilizam computador e Internet em % do total de indivíduos: por grupo etário”, disponíveis em: https://www.pordata.pt/Portugal/Indiv%C3%ADduos+com+16+e+mais+anos+que+utilizam+computador+e+Internet+em+percentagem+do+total+de+indiv%C3%ADduos+por+grupo+etário-1139

[13] Veja-se que o legislador considera o serviço de comunicações eletrónicas um serviço público essencial nos termos do art. 1º, nº 2, al. d) da Lei 23/96, de 26 de julho (Lei dos Serviços Públicos Essenciais) desde 2008 (redação dada pela Lei nº 12/2008, de 26 de fevereiro).

[14] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.11.2010 (Rel. M.ª João Areias). O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.02.2001 (Rel. Mário Cruz) também já reproduzia, ainda que em geral, esta ideia: “Para efeito de impenhorabilidade, o conceito de “bens imprescindíveis a uma economia doméstica” tem variado ao longo da história, de acordo com o grau de desenvolvimento social, cultural e económico, e o padrão das necessidades essenciais para uma família deve aferir-se em função do nível sócio-cultural e económico de qualquer família média portuguesa”.

[15] LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil – Volume II, 2ª Edição, 2005, p. 546.

[16] “Elementar”, recuperando o raciocínio de RUI PINTO (nota de rodapé 2).

[17] Questão distinta, não aprofundada nesta sede, será a de saber se o router de acesso à internet (quando propriedade do executado) possui suficiente valor venal, estando em causa o eventual enquadramento na previsão do art. 736º, al. c) (impenhorabilidade por falta de justificação económica).
Em relação ao computador (quando propriedade do executado), este será impenhorável caso constitua um instrumento de trabalho, nos termos do nº 2 do art. 737º.