Audiências Remotas em Arbitragem Internacional: Perigos e Potencialidades

A pandemia alterou, inevitavelmente, a normalidade de um processo arbitral, firmando-se essa tónica disruptiva com maior vigor nas audiências de julgamento. Pretendemos analisar esta realidade e o seu impacto na discussão em torno dos princípios processuais orientadores da arbitragem internacional, refletindo sobre perigos e potencialidades.

The state of the art e o que se adivinha

Cumpre, antes de mais, definir audiência remota: aquela que se realiza mediante a utilização de tecnologias de comunicação para ligar simultaneamente vários participantes que se encontram em locais diferentes (1). O uso dessas tecnologias não é novidade. Um inquérito da Queen Mary University of London de 2018 (2) demonstrou que a maioria significativa dos utilizadores de arbitragem já foi confrontada com o uso de videoconferência (60%), outra tecnologia de comunicação adequada à sala de audiência (73%) ou já usou a cloud para armazenamento de dados (54%). No entanto, o mesmo estudo denota que 78% dos árbitros inquiridos nunca ou raramente conduziu audiências virtuais.

Durante o período pandémico, entre 15 de março e 30 de junho de 2020, um estudo de Born, Day e Virjee demonstrou que o número de audiências totalmente remotas triplicou face aos dados pré-pandemia. Curiosamente, muitas das preocupações elencadas relativamente a este modelo de audiência, a saber, os problemas tecnológicos, de proficiência ou a estabilidade da ligação, acabaram por não perturbar o decorrer das audiências (3). Caso para se dizer que a necessidade aguçou o engenho.

Reflexo das novas tecnologias nos princípios orientadores da arbitragem

Tem-se intensificado a discussão em torno da razoabilidade do direito a uma audiência física. No final de contas, como pergunta Richard Susskind, “O tribunal é um serviço ou um lugar?” (4). Entre nós, o direito a audiência física não consta expressamente consagrado na Lei de Arbitragem Voluntária. Consta sim o princípio fundamental do processo arbitral de garantir às partes uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final (artigo 30.º, n.º 1, al. b) LAV). No mais, o artigo 31.º, n.º 2 prevê que o tribunal arbitral pode, salvo convenção das partes em contrário, reunir em qualquer local que julgue apropriado. Assim, alguma doutrina defende que não há em Portugal o direito a uma audiência arbitral física (5). Não obstante, as partes podem acordar na realização de uma audiência virtual.

Em defesa da audiência física argumenta-se uma audiência só cumpre o seu propósito desde que se faça oralmente e com troca simultânea de prova e alegações, bem como a eventualidade de deficiências técnicas ou limitações tecnológicas na sua versão remota, com impacto na produção de prova ou na exposição das alegações (6). Ora, nos termos da Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais, a inobservância de um possível direito a audiência física pode colocar em causa o reconhecimento e a exequibilidade da decisão arbitral, com base no direito de a parte apresentar o seu caso e ser tratada de forma igual (cf. artigo V, n.º 1, als. b) e d) e n.º 2, al. b)). No entanto, a jurisprudência a nível global não tem acolhido estes argumentos senão em casos extremos, em que uma das partes fica evidentemente prejudicada por uma falha tecnológica que não lhe permite expor a sua causa adequadamente e o tribunal arbitral decide prosseguir (7).

No mais, se por um lado os ganhos com celeridade e eficiência beneficiam a diminuição da distância real entre as partes e respetivos custos com viagens e alojamento temporário, e o planeamento da audiência com horários mais precisos para a produção de prova; por outro lado, a disparidade de fusos horários, no acesso à tecnologia e os custos elevados com software, tradução, estenógrafos ou gravações podem perturbar o princípio da igualdade. Perante este impasse, será o tribunal a decidir se a audiência se realiza remotamente ou não, ponderando os fatores atinentes ao caso concreto, incluindo o ónus da prova (8).

No tocante ao princípio da oralidade e da imediação, logo nos lembramos da prova testemunhal. Uma audiência remota garante estes princípios? É fundamental que se garanta a autenticidade e plena liberdade da prestação do depoimento (9). O foco da discussão prende-se comummente com a proximidade física da testemunha que permite analisar a “a postura, o rubor, a inquietude, o olhar, a cadência do discurso e do gesto, o tom de voz”, a solenidade da sala de audiência e o controlo do contacto entre testemunhas (10). Uma posição contrária alega ao invés que indicadores da mentira não estão cientificamente corroborados, devendo observar-se o discurso verbal (11), e nota que várias outras técnicas permitem assegurar a fiabilidade do depoimento da testemunha, como seja a de interrogar a testemunha sem intervalos. No mais, deve ponderar-se solicitar à testemunha que tenha o telemóvel em modo voo, em cima da mesa, e que a câmara inclua quer a testemunha quer a sua mesa, a utilização de duas câmaras, ou até de outros métodos como uma câmara 360º (por ex., a OWL Camera) ou sistemas de telepresença, como seja o Cisco Telepresence (12). A antecipação pelas partes e o tribunal de que todos os intervenientes têm acesso às condições apropriadas, de outros possíveis problemas a nível da segurança cibernética e proteção de dados, e de regras sobre os aspetos mais práticos da audiência e sua transmissão são essenciais.

Nota final

As audiências remotas, como se demonstrou, não constituem um fenómeno fugaz de existência recente. Contrariamente, tem vindo a consolidar-se na arbitragem internacional, tendo a pandemia servido para estimular o recurso a este método. Várias novas regras vieram já integrar este fenómeno, como sejam o regulamento da LCIA de 2020, e ainda os regulamentos de arbitragem do CAC e da ICC, e as Regras da IBA sobre a produção de prova, estes últimos de 2021 (13). Muitos recursos estão hoje disponíveis online sobre como conduzir uma audiência remota (14).

Se é certo que vários perigos estão identificados, pensamos que as vantagens das audiências remotas, na maioria dos casos, se sobreporão àqueles sem prejuízo para os princípios do direito de defesa, igualdade das partes e celeridade e eficiência em arbitragem. A arbitragem, enquanto método de resolução de litígios carateristicamente flexível, tenderá para a plena incorporação das audiências remotas, acompanhando a importância crescente das comunicações virtuais.

 

Sobre as autoras:

Ana Coimbra Trigo é aluna de Doutoramento na NOVA School of Law e integra a equipa da NOVA Dispute Resolution Forum. As suas áreas de interesse são direito internacional privado, direito comercial International e arbitragem internacional. É associada na área de prática de Resolução de Litígios da PLMJ Advogados. Concluiu a licenciatura na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e um mestrado em direito europeu e internacional na China-EU School of Law (CUPL), Pequim, conferido pela Universidade de Hamburgo.

 

Sofia Rodrigues é aluna de licenciatura da Nova School of Law. Durante o verão de 2019 foi convidada a estagiar na sociedade Morais Leitão, na área de Europeu e Concorrência. Recentemente, Sofia foi aceite no mestrado de Direito Forense e Arbitragem na Nova School of Law, que irá iniciar em setembro deste ano. As suas áreas de interesse são a arbitragem internacional, concorrência e processo civil.

 

(1) Maxi Scherer, “Remote Hearings in International Arbitration: An Analytical Framework”, in Journal of International Arbitration, Vol. 37, n.º 4 (The Hague: Kluwer Law International, 2020): 2.

(2) Pual Fridland e Stavros Brekoulakis, “2018 International Arbitration Survey: The Evolution of International Arbitration”, Queen Mary University of London e School of International Arbitration: 31 e 32, acedido a 19 de abril de 2021, disponível em: http://www.arbitration.qmul.ac.uk/media/arbitration/docs/2018-International-Arbitration-Survey—The-Evolution-of-International-Arbitration-(2).PDF

(3) Gary Born, Anneliese Day e Hafez Virjee, “Empirical Study of Experiences with Remote Hearings”, in International Arbitration and the COVID19 Revolution (The Hague: Kluwer Law International, 2020): 2-7.

(4) Lucinda D. Dias da Silva, “Processo Eletrónico e Conexão à Distância”, in Comentários à Legislação Processual Administrativa, Vol. 1, ed. 5ª (Lisboa: AAFDL Editora, 2020): 709.

(5) Maria Camila Hoyos, Carolina Botelho Sampaio, “Does a right to a physical hearing exist in international arbitration?”, ICCA Projects: 2-6, acedido em 19 de abril de 2021, disponível em: https://cdn.arbitration-icca.org/s3fs-public/document/media_document/Portugal-Right-To-A-Physical-Hearing-Report.pdf

(6) Questão colocada no problema do Willem C. VIS MOOT de 2020/2021.

(7) Scherer, “Remote Hearings”, 4-5 e 13-16.

(8) Scherer, “Remote Hearings”, 6 e 7.

(9) Luís Filipe Pires de Sousa, “O sentido útil do princípio da imediação” (2020): 5, acedido a 19 de abril de 2021, disponível em: https://www.academia.edu/43470477/O_SENTIDO_%C3%9ATIL_DO_PRINC%C3%8DPIO_DA_IMEDIA%C3%87%C3%83O_NOTAS_A_PROP%C3%93SITO_DO_ARTIGO_6o_A_DA_LEI

(10) Silva, “Processo Eletrónico”, 708-710.

(11) Sousa, “O sentido útil”, 11-16

(12) Ana Coimbra Trigo, “Tips tecnológicas para inquirir testemunhas em audiência virtual”, Linkedin, 28 de maio de 2020, acedido em 19 de abril de 2021, disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/tips-tecnol%C3%B3gicas-para-inquirir-testemunhas-em-ana-coimbra-trigo/?fbclid=IwAR2PG-Uax15ZTtcFDitQ_js3IqDFChE-cNH60GGc6X935L_HIt9u7pSAGAs

(13) Artigo 14.º do Regulamento do CAC; artigos 26.º, n.º 1 do Regulamento da ICC; artigo 19.º, n.º 2 do Regulamento da LCIA e artigo 8.º, n.º 2 das Regras IBA.

(14) “Resources on virtual hearing”, Delos Dispute Resolution, acedido a 19 de abril de 2021, disponível em: https://delosdr.org/index.php/2020/05/12/resources-on-virtual-hearings/

Fonte da imagem: Reprodução da internet. Registo de filtro de gato usado por um advogado norte-americano numa audiência judicial em linha, que este não conseguiu tirar na aplicação Zoom, situação que se tornou viral em fevereiro de 2021.