As várias incoerências do artigo 228.º, n.º1, al. b) do Código Penal à luz do direito da insolvência

O artigo 228.º, nº1, al. b) do Código Penal, sob a epígrafe “insolvência negligente”, pune o devedor que, tendo conhecimento das dificuldades económicas e financeiras da sua empresa, não requeira em tempo nenhuma providência de recuperação, com pena de prisão até um ano, ou com pena de multa até 120 dias, desde que venha efetivamente a ser reconhecida judicialmente a situação de insolvência.

O crime de insolvência negligente(1) é aquele que, no âmbito dos crimes insolvenciais, mais alterações sofreu ao longo das revisões do Código Penal, o que é demonstrado, desde logo, pelas sucessivas alterações na sua epígrafe. Primeiramente começou por ser apelidado “falência por negligência”, tendo posteriormente passado para “falência não intencional”, e assentado, por fim, com a epigrafe “insolvência negligente” hoje consagrada(2).

Concordando com Pedro Caeiro, creio que esta inconstância muito provavelmente resultou da hesitação (compreensível) em punir “deveres” (faculdades, na realidade) em matéria extrapenal(3).

Mas vejamos, ao punir o devedor que não requer em tempo uma providência de recuperação, estamos perante um crime de omissão pura. Relembrando a doutrina de Figueiredo Dias, “o crime de omissão reside na violação de uma imposição legal de atuar, pelo que, em qualquer caso, só pode ser cometido por pessoa sobre a qual recaia um dever jurídico de levar a cabo a ação imposta e esperada”(4). Importa, assim, averiguar se existe alguma imposição legal de atuar.

Recorrendo ao direito da insolvência, entendemos que, no artigo 228º, nº1, al. b) do Código Penal, por “providências de recuperação” o legislador se está a referir aos mecanismos que tutelam situações pré-insolvenciais, tais como o Processo Especial de Revitalização (PER), o Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP),  o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE), aos quais acresce, nesta fase pandémica, o Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas (PEVE)(5).

Vejamos. Quanto ao PER, diz-nos o artigo 17º-C do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) que “o processo de revitalização se inicia pela manifestação da vontade da empresa e de credores (…)”. Ou seja, sem esta manifestação de vontade, não se dá início a este processo.

Por outro lado, quanto ao PEAP(6), tem-se que o artigo 222º-C do CIRE também dita que este processo se inicia “pela manifestação da vontade do devedor e de pelo menos um dos seus credores”.

Relativamente ao RERE, tem-se que o artigo 4º da Lei nº 8/2018, de 2 de março, também estabelece preceito semelhante.

E, por fim, também o artigo 2º da Lei nº 75/2020, de 27 de novembro, relativo ao PEVE, diz que este processo se inicia “a requerimento fundamentado da empresa ou do devedor”.

Assim, há algo em comum a todos estes mecanismos de pré-insolvência: todos eles são facultativos.

Por outro lado, o artigo 18º do CIRE prevê um dever de apresentação à insolvência(7) para o devedor que seja pessoa coletiva ou pessoa singular titular de uma empresa(8). Há aqui um verdadeiro dever jurídico de apresentação à insolvência, sob pena de se presumir a culpa do devedor ou dos seus administradores para efeitos de qualificação da insolvência como culposa (artigo 186.º n.º 3 CIRE)(9).

Ou seja, conclui-se que, contrariamente ao caso do artigo 18.º do CIRE, o recurso às medidas de recuperação que se encontram previstas na lei corresponde ao exercício de uma faculdade, não havendo um dever legal de apresentar requerimento conducente ao início do processo nestes casos.

Portanto, temos que enquanto o direito civil confere um amplo espaço de liberdade aos agentes, que podem optar, ou não, por recorrer aos meios de recuperação, o direito penal prevê uma consequência criminal caso se opte por não recorrer à medida, desde que o devedor venha a ser declarado insolvente.

Ora, a meu ver, e concordando inteiramente com Pedro Caeiro(10) e Miguel Vasconcelos(11), tal resulta numa incongruência insustentável entre o direito da insolvência – onde é dado um espaço de liberdade de decisão ao devedor – e o direito penal, onde essa mesma decisão, supostamente livre, pode dar origem a responsabilização criminal.

Aliás, e demonstrando a incompreensível incoerência desta norma, enquanto neste caso, embora não exista nenhum dever jurídico, há lugar a responsabilização criminal, no caso de incumprimento do dever de apresentação à insolvência (um verdadeiro dever jurídico), não temos, atualmente(12), tutela criminal. A única consequência prevista para o incumprimento do dever de apresentação à insolvência é a presunção da culpa para efeitos do incidente de qualificação da insolvência, um incidente de cariz civil, nos termos do artigo 185 n.º1 do CIRE.

Neste sentido, a punição pelo não exercício de uma faculdade legal não parece cumprir com o princípio da mínima intervenção do direito penal, para além de implicar uma incongruência sistemática grave entre o direito criminal e o direito da insolvência. Ademais, tendo em conta esta punição, não se compreende a falta de tutela penal da omissão do dever de apresentação à insolvência, um verdadeiro dever legal que opera numa fase em que o bem jurídico protegido (o património dos credores) está em verdadeira crise devido à situação em que o devedor se encontra.

xxx

Sobre a autora:

Lua Mota Santos é licenciada em Direito pela NOVA School of Law e encontra-se a terminar a fase letiva do Mestrado em Forense e Arbitragem na mesma faculdade. A partir de setembro de 2021 começará o seu percurso profissional enquanto advogada estagiária na Uría Menéndez – Proença de Carvalho. Atualmente, faz parte do projeto de investigação “IN_SOLVENS: Direito da Insolvência em Portugal – uma análise multidisciplinar”, integrando ainda a equipa do NOVA Consumer Lab. As suas principais áreas de interesse são o direito da insolvência, direito penal e processual penal, assim como direito processual civil.

xxx

(1) Este tipo penal foi introduzido pela Lei nº 65/98, de 2 de setembro

(2) CAEIRO, Pedro, Anotação ao artigo 228º in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, coordenado por Jorge de Figueiredo Dias, 1999, p. 438

(3) Idem

(4) DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2007, p. 913

(5) O seu regime consta da Lei nº75/2020, de 27 de novembro, e é de notar que este mecanismo de recuperação também pode ser utilizado em situações de insolvência atual, conforme o art.º. 6, nº1, da mencionada Lei.

(6) A voluntariedade do PER e do PEAP também já podia ser retirada do artigo 1º, nº 2 e nº 3 do CIRE, que utiliza a expressão “pode”.

(7) Por força da pandemia, este dever de apresentação à insolvência encontra-se suspenso, nos termos da Lei nº 4-B/2020 (artigo 7 nº6 al.a) do anexo).

(8) PRATA, Ana, SIMÕES, Rui e CARVALHO, Jorge Morais, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, 1ª edição, 2013, p. 75.

(9) A qualificação da insolvência como culposa corresponde a uma consequência retirada no âmbito do incidente de qualificação da insolvência e traduz uma medida de cariz puramente civil, tal como determina o artigo 185 in fine CIRE.

(10) CAEIRO, Pedro, ob. Cit, p. 441

(11) VASCONCELOS, Miguel, As dimensões jurídico-privada e jurídico-penal da insolvência (uma introdução), in Infrações Económicas e Financeiras, Estudos de Criminologia e Direito, Coimbra Editora, p. 542

(12) Foi com a revisão ao Código Penal de 1982 que foi eliminada a punição por “falência culposa” quando o agente não se tivesse apresentado à falência nos prazos legalmente estipulados. O Código Penal de 1982 veio, então, descriminalizar esta infração, sem que, tal como nota Pedro Caeiro (ob.cit p. 429), nas Atas de 1979 se expliquem os motivos dessa opção. Posteriormente, o DL 132/93 reintroduziu a punição dessa conduta, tendo, contudo, o Código Penal de 1995 voltado a eliminá-la. Novamente, fica exaltada a profunda hesitação e confusão do legislador quanto a este tipo penal.