O direito do credor à satisfação do seu crédito decorre da garantia constitucional do direito de propriedade, prevista pelo artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, e engloba, naturalmente, a possibilidade da sua realização coativa, através do património do devedor no qual se inclui, em última ratio, a casa de morada de família (cfr. artigos 601.º e 817.º do Código Civil e artigo 735.º do Código de Processo Civil). Em contraposição a este, surgem alegações de uma possível violação ao direito à habitação do devedor previsto pelo artigo 65º da Constituição da República Portuguesa. Tal como outros direitos sociais, o conteúdo do direito à habitação desdobra-se numa dupla vertente: uma vertente negativa, que se traduz no direito a exigir do Estado ou de terceiros que se abstenham de atos que prejudiquem arbitrariamente o direito em causa, e uma vertente positiva, que se traduz no direito a medidas estaduais que visem a sua promoção e proteção.
Assim, é importante esclarecer que o regime que possibilita a penhora da casa de família quando esta seja, simultaneamente, a habitação própria permanente do executado (artigo 751.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), nunca será uma afetação arbitrária do direito de propriedade e de habitação deste, pois que esta só será penhorada na sequência de um facto que lhe é exclusivamente imputável: o não cumprimento das obrigações que livremente assumiu (cfr. artigos 817.º e 601.º do Código Civil)(1). E depois, que é consensual que o direito à habitação previsto pelo artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa tem em vista prestações do Estado e dos restantes entes públicos e não dos particulares(2). Mais, acrescenta o Tribunal Constitucional que tal direito não se esgota nem se identifica com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação, sendo também perfeitamente realizável através de outras vias, como o arrendamento ou o comodato de habitação, e não significa o direito à manutenção de um determinado nível de vida anterior à penhora(3).
Daí que não se possa configurar como constitucionalmente imposta e decorrente da proteção do direito à habitação uma solução que, nas relações entre particulares, consagre um regime de impenhorabilidade da casa de morada de família. Na verdade, seria incompreensível que se constrangesse o credor a custear o direito à habitação do seu devedor.
Com efeito, sendo certo que é merecedora de ponderação a circunstância de o imóvel penhorado ser a habitação do executado, a verdade é que tal não foi desconsiderado pelo legislador, que, em primeiro lugar, faz depender a penhora da verificação de vários requisitos, que se tornaram progressivamente mais exigentes. Vejamos que o artigo 834º, n.º 2 do antigo Código de Processo Civil (na redação introduzida em 1961) estabelecia apenas que era admissível a penhora de bens imóveis quando a penhora de outros bens não permitisse a satisfação integral do credor no prazo de seis meses. Mais tarde, a Lei 60/2012 passou a prever, especificamente, que a penhora da habitação do executado só poderia ser realizada se a penhora de outros bens não permitisse a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses (se a dívida não excedesse metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância) ou no prazo de 18 meses, se o excedesse. Por fim, com a Lei 117/2019, o artigo 751º, n.º 4 prevê agora que a casa de morada de família só pode ser penhorada se a penhora de outros bens não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 30 meses (se a dívida não exceder o dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância) ou no prazo de 12 meses se o exceder.
Em segundo lugar, há que ter em conta que o sistema contempla várias proteções para os casos em que a penhora incida sobre um imóvel tão particular como a casa da morada de família. Vejamos que, para além do direito a permanecer no imóvel até à venda executiva (cfr. artigo 756º, número l, alínea a) do Código de Processo Civil), o legislador prevê que, caso existam sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução deverá comunicar o facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes e que, uma vez efetuada a venda executiva, poderá haver lugar à suspensão da entrega do imóvel ao adquirente quando se mostre que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local (cfr. artigos 828.º, 861.º, n.º 6 e 863.º, n.os 3 a 5 do Código de Processo Civil). A lei prevê ainda a possibilidade de suspensão da venda no caso de execução de sentença pendente de recurso (cfr. artigo 704.º, n.º 4 do Código de Processo Civil) e nos casos de dedução de oposição à execução mediante embargos de executado e de oposição à penhora (cfr. artigos 733.º, n.º 5, 785.º, n.º 4 e 856.º, n.º 4 do Código de Processo Civil). Mais, e para que se afaste qualquer aproveitamento arbitrário e indevido do direito de propriedade do executado em razão de o valor penhorado ser superior à quantia exequenda, o legislador prevê que uma vez realizada a venda executiva e efetuada a liquidação da responsabilidade do executado, ser-lhe-á entregue o remanescente do valor que não seja necessário ao pagamento da quantia exequenda e legais acréscimos (cfr. artigos 847.º e 849.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil).
Mariana Canotilho votou vencida no Acórdão do Tribunal Constitucional 612/2019, defendendo que, tratando-se de um “credor profissional”, deve ser feita uma ponderação de interesses distinta da que é feita no caso de ambas as partes serem particulares, pois a possibilidade de sempre se poder penhorar a casa de morada de família incentiva o crédito indiscriminado e aligeira os credores profissionais da obrigação de avaliarem corretamente os riscos da concessão de créditos, que são uma dimensão inultrapassável do objeto de negócio da banca, remunerada através do pagamento de juros. Assim, a juíza conselheira considera que o art. 751º, nº 4 do Código de Processo Civil falha na proteção do devedor que seja consumidor (cfr. artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa)(4). Em contraposição, sempre se poderá dizer que o tratamento defendido por Mariana Canotilho será discriminatório e injustificado por tratar de maneira diferente um credor pela sua “dimensão” e ainda que pôr em causa o direito à satisfação integral dos credores profissionais como as Instituições Bancárias poderá afetar todo o sistema de créditos de que tanto depende o desenvolvimento da economia e que facilita a própria concretização do direito à habitação das famílias.
Em meu entender, o artigo 751º, n.º 4 do Código de Processo Civil, que é aplicável não só a um “credor profissional” e um “devedor honesto”, ou a um “credor honesto” e um “devedor profissional”, mas a todos os tipos de indivíduos, pondera um delicado equilíbrio entre os interesses de ambas as partes, algo desde logo muito complexo de se alcançar. Além do mais, considero que esta norma protege o interesse público, na medida em que a impenhorabilidade da casa de morada de família, para além de tudo o que podia significar em termos de insatisfação dos direitos do credor, poderia também premiar o devedor com um falso sentido de proteção e incentivo ao incumprimento, o que poderia desvirtuar o intuito do processo executivo, abalar a confiança dos credores e, assim, prejudicar todo o sistema de contratos e créditos essencial ao desenvolvimento da economia e da sociedade.
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Sobre a autora:
Ana Catarina Carvalho é licenciada em Direito pela Nova School of Law e frequenta, no presente momento, o Mestrado em Direito Forense e Arbitragem na mesma instituição. A aluna estagiou num Tribunal Judicial onde desenvolveu um especial interesse por investigar o impacto real do Direito na vida dos cidadãos. As suas principais áreas de interesse são Direito Civil, Direito Processual Civil Declarativo e Executivo, bem como o Direito Penal e Direito Processual Penal.
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(1) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2019, série I, de 2019-06-12, processo nº. 431/18, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-02-2020 (Teresa Sandiães), processo n. 870/13.2 TCLRS-B.L1-, disponível em www.dgsi.pt.
(2) GOMES CANOTILHO, José; MOREIRA, Vital. A Constituição Portuguesa Anotada – Volume I, 4ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2014. ISBN: 9789723222869. p. 836: “incumbe ao Estado e, não aos particulares, garantir os meios que facilitem o acesso à habitação própria (fornecimento de terrenos urbanizados, crédito acessível à generalidade das pessoas, direito de preferência na aquisição da casa arrendada) e que fomentem a oferta de casas para arrendar, acompanhada de meios de controlo e limitação das rendas (subsídios públicos às famílias mais carenciadas)”.
(3) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2019, série I, de 2019-06-12, processo nº. 431/18, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt, em que se refere aliás que, “havendo a possibilidade de o executado, em consequência de uma execução, ser privado da sua casa de habitação, em última análise, será ao Estado, caso tal se mostre necessário, que caberá́ assegurar a proteção do direito constitucional à habitação”.
(4) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2019, série I, de 2019-06-12, processo n. 431/18, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.