O papel e a função da réplica na proposta de alteração do CPC: análise crítica

No dia 10 de maio deste ano deu entrada na Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 92/XIV/2ª, que se propunha a alterar vários instrumentos legislativos, entre os quais o Código de Processo Civil. A intenção do legislador, com esta proposta, era a de introduzir modificações na lei processual civil que agilizassem o processado e, simultaneamente, clarificassem os institutos “(…) permitindo uma melhor e mais célere administração da justiça”[1].

Esta proposta não chegou à fase da votação final global, tendo, entretanto, caducado com a dissolução da Assembleia da República. Ainda assim, propomo-nos fazer uma breve análise acerca do papel da réplica no processo civil português e de que forma esta proposta seria ou não bem-vinda. Nesses termos, a análise incidirá sobre o artigo 584.º (função e prazo da réplica) da referida Proposta.

Redação proposta

A proposta de redação reproduz, na sua essência, o regime do artigo 502.º do antigo CPC, cuja configuração vinha já da Reforma Intercalar de 1985, mantendo-se inalterada na Reforma de 1995/96. Assim, além de se admitir, nos nº 1, in fine, e nº 2 do art. 584º proposto, a apresentação de réplica pelo autor para “deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção” e para “contestar os factos constitutivos do direito que o réu tenha alegado” na contestação no caso de ações de simples apreciação negativa (manutenção das funções atuais da réplica), pretendia o legislador que voltasse a réplica a poder ser utilizada para resposta do autor às exceções invocadas pelo réu na contestação (“o autor pode responder à contestação na réplica, se for deduzida alguma exceção e somente quanto à matéria desta”, cf. nº 1, parte inicial, do art. 584º proposto).

Curiosamente, esta solução almejava os mesmos objetivos da Reforma de 2013 (garantia da celeridade, simplificação e agilização processuais).

A solução atual: análise crítica

A lógica da solução atual, saída da Reforma de 2013, é a de que é útil, para obter a celeridade processual, ter uma tramitação-base simples e curta na qual as partes, por escrito, se restringem ao que é essencial, relegando para o debate oral a matéria que possa ser mais complexa. Para tanto, torna-se necessária a compressão da fase dos articulados[2] [3].

Todavia, tendo em conta os desenvolvimentos na prática judiciária, tem-se revelado, não raro, a necessidade de apresentação de um terceiro articulado a elaborar pelo autor – admitido pelo juiz ao abrigo do dever de gestão processual e do princípio da adequação formal (artigos 6.º, n.º 1 e 547.º CPC) – através do qual se promove a discussão das exceções de forma mais pormenorizada e aprofundada, contribuindo para a descoberta da verdade material de forma mais expedita, na medida em que se agiliza a audiência prévia e/ou a audiência final[4].

Em caso de não admissão deste terceiro articulado pelo juiz, é criticada por alguns a lógica subjacente ao regime, que promove tardiamente o contraditório, que só terá lugar na audiência prévia, fazendo com que se relegue o “conhecimento de questões prévias ao mérito da causa que permanecem em aberto até fases muito avançadas”[5], desta forma sobrecarregando-se demasiado a audiência prévia (ou final), o que, sobretudo em função da complexidade do processo, se mostra contrário à economia e agilização processuais[6].

Perante este cenário, a Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação de Lisboa, LAURINDA VITÓRIA GEMAS, não se coíbe de afirmar, em artigo dedicado ao tema da reforma do processo civil, que a alteração de 2013 “foi uma péssima alteração, que, na prática, magistrados e advogados acabaram por rejeitar, preferindo com frequência a introdução de terceiro articulado de resposta, da iniciativa do juiz”[7].

Como se verá infra, afastamo-nos de tal entendimento, na medida em que, a ser assim, estar-se-ia a desconsiderar a força do princípio da adequação formal e do poder-dever da gestão processual, que determinam a não adoção de regras processuais estanques.

Resposta a algumas questões suscitadas pela solução atual

Numa análise literal, a solução atual, prevista para os casos em que há lugar a réplica, parecerá não justificável, já que, havendo necessidade de resposta a exceções, leva a que o autor responda num momento à matéria da reconvenção ou aos factos constitutivos do direito e só mais tarde às exceções eventualmente deduzidas, não tendo qualquer utilidade (art. 130.º CPC) nem promovendo a celeridade. Naturalmente, deve ser defendido o aproveitamento da réplica para resposta às exceções deduzidas pelo réu (por razões de economia processual)[8].

De igual modo, alguma polémica doutrinária se tem desenvolvido em torno da questão de saber, nesta específica situação, em que momento fica precludido o ónus de impugnação do autor, nos termos do artigo 587.º, n.º 1 CPC, isto é, para que não se verifique o efeito cominatório aí previsto, deve o autor responder às exceções, deduzidas pelo réu, no momento da apresentação da réplica? Em resposta a esta questão, apontando o legislador o momento da audiência prévia (ou final) como aquele em que, por excelência, o autor deve responder às exceções, parece-nos que, não havendo despacho judicial a determinar resposta por escrito (caso em que é aplicável o artigo 587.º), não deve haver efeito cominatório[9].

Não obstante, esta dinâmica está longe ainda de ser pacífica, verificando-se nos primeiros anos de aplicação prática um cenário de incerteza e insegurança na administração da Justiça, desde logo porque assente na admissibilidade pelo juiz, que é casuística, tanto do aproveitamento da réplica para resposta a exceções[10] como do articulado de resposta às exceções quando a réplica não seja admissível nos termos do art. 584.º.

A redação proposta: análise crítica

É neste cenário que surge a proposta de lei em análise que, embora procurando os mesmos objetivos que conduziram à solução atualmente em vigor, consagra um regime oposto a uma tramitação-base simples e assente num processo mais moldável às necessidades concretas, parecendo conduzir a resultados contrários a um processado ágil e célere. Com efeito, a consagração de um modelo de articulados mais densificado contribui, em abstrato, para um arrastamento processual; por outro lado, revela incompreensão pelo princípio da adequação formal e pelo dever de gestão processual, que o próprio legislador reforçou na reforma de 2013.

Neste sentido, a proposta não veio senão proceder ao reconhecimento formal do articulado de resposta às exceções, pondo fim à questão que tratava de saber se seria admissível um terceiro articulado para responder a exceções. Com isto, a fase dos articulados passaria a comportar, novamente, pelo menos, três articulados (petição inicial, contestação e réplica[11]). Ficaria também abandonada a dúvida relativa à existência do ónus de impugnação do autor, nos termos do art. 587.º, quanto aos factos alegados pelo réu, tendo a falta de apresentação da réplica efeito cominatório quanto à resposta às exceções.

Não vislumbramos, no entanto, em que medida esta alteração poderia ser entendida como essencial para assegurar a celeridade processual e a boa administração da justiça, desde logo porque a questão mais relevante relacionada com a garantia do contraditório ao autor é resolvida nos termos do art. 3º, nº 4.

Além do mais, repare-se que a não tipificação da réplica como articulado de resposta às exceções deduzidas na contestação não significa tout court que o autor não mais possa fazê-lo por escrito. Pelo contrário, é ao juiz a quem cabe fazer tal trabalho de triagem, devendo verificar se a complexidade e os fins do processo justificam que o autor se pronuncie novamente ainda na fase dos articulados, apresentando a sua réplica (quando apenas com o propósito de responder às exceções deduzidas pelo réu). Verificando que sim, profere despacho de admissão de terceiro articulado.

Nesta tarefa, deve o juiz ter em consideração a complexidade das exceções, bem como a plausibilidade da sua procedência ou a impraticabilidade da resposta na audiência prévia. Se concluir que não se justifica a sua apresentação, a resposta é relegada para a audiência prévia ou o início da audiência final, mantendo-se o contraditório, nos termos gerais do artigo 3.º, n.º 4 CPC.

Só assim é possível concretizar o poder funcional de gestão processual e dar forma ao princípio da adequação formal, dispostos nos arts. 6.º e 547.º CPC, respetivamente. Ao acrescentar minúcia à regulação da tramitação processual, deixando pouca margem de manobra ao juiz, a proposta vinha esbater a relevância prática de ambos na medida em que comprimia a criatividade do processo, resultante da direção ativa do processo[12].

É ao abrigo da sua direção ativa do processo que o juiz determina, à luz da solução atual, o terceiro articulado de resposta às exceções. Por isso, a oportunidade de resposta às exceções por escrito dependerá de caso para caso, atendendo-se à adequação dessa formalidade face às circunstâncias específicas do processo, designadamente, a sua complexidade, e percebendo-se se aquela resposta confere ao andamento do processo maior celeridade e eficiência. Deste modo, e a título de exemplo, fará sentido conhecer imediatamente de uma exceção dilatória quando esta determine a absolvição da instância, havendo imediata prolação de despacho saneador sem recorrer a audiência prévia (art. 592º, nº 1, al. b) e, para tal, permitindo-se a resposta por escrito; pelo contrário, haverá certamente exceções cuja resposta será muito mais viável em sede de debate oral, podendo não se observar a apresentação do articulado escrito, sob pena de se proceder a um ato que seria, de certa forma, dilatório[13] – é aqui que o juiz procede à gestão processual através da recusa da prática de atos impertinentes ou meramente dilatórios visando a simplificação e agilização processuais.

Por sua vez, por via do princípio da cooperação deve permitir-se às partes que possam também adaptar a tramitação processual, requerendo a adequação formal do processo às especificidades do caso concreto.

Assim, são desconhecidas as razões que levaram a que, passados apenas 8 anos desde a última reforma do CPC, se quisesse adotar uma solução antónima à vigente, ainda para mais no infeliz sentido de densificar a fase dos articulados. Naturalmente, os processos não são unívocos entre si, pelo que a imposição de regras formalistas redunda, por vezes, em artificialismo. Gera-se o efeito perverso de desarticulação entre as regras codificadas e a realidade do processo – pretendendo-se legislar nos campos em que (já) tem dominado a flexibilidade, este caso seria, seguramente, um deles.

Sobre os autores:

João Duarte holds a Laws degree from NOVA School of Law and is currently a first-year Litigation and Arbitration Master’s Student at the same Faculty. He worked as Coordinator of the Pedagogical Office of the Students’ Union of NOVA School of Law, having organised scientific courses, among others, in the areas of Procedural Law and legal professions. He was President of the General Assembly of the same Association in 2021. João also had contact with the world of Law, having worked as a summer intern at PLMJ.

A Francisca Marques de França holds a Law Degree from NOVA School of Law and is currently attending the first year of the Masters Program in Forensic Law and Arbitration at the same faculty.  She is also a researcher at NOVA Refugee Clinic – Legal Clinic (Migration & Gender and Sexuality). Her main areas of interest are Criminal Law, Criminal Procedural Law, Declarative and Executive Civil Procedural Law, as well as Civil Law.

[1] Cfr. exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 92/XIV/2ª.

[2] Vide MARIANA FRANÇA GOUVEIA e Outros, Justiça Económica – Síntese e Propostas, Vol. III, FFMS e CCIP, dezembro de 2012, pp. 39 e 41, estudo que veio a influenciar a solução consagrada neste âmbito na lei em 2013.

[3] O que se reflete na atribuição de uma maior relevância à audiência prévia, que passou a ter natureza tendencialmente obrigatória (art. 591.º, n.º 1).

[4] Leia-se JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, Gestlegal, 2017, p. 232, que admite, com felizes palavras, esta solução “a fim de serem clarificadas mais cedo as posições das partes ou serem desconcentrados os atos da audiência para maior celeridade desta”. Também GUILHERME BRANDÃO SALAZAR LOUREIRO GOMES, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da Universidade Católica, março de 2016, p. 29: sem uma resposta escrita às exceções deduzidas pelo réu, “não se assegura na prática o tratamento e a discussão que muitas vezes estas exceções exigem e que teriam se o contraditório fosse feito por escrito ainda na fase dos articulados e, por conseguinte, a descoberta da verdade material sairá muitas vezes prejudicada”.

[5] Como se aponta em MANUEL EDUARDO BIANCHI SAMPAIO, “A compensação e a admissibilidade de um articulado de um articulado de resposta nas formas de processo em que não é admissível reconvenção, em especial no processo laboral”, in Julgar online, março de 2021, p. 11.

[6] Há, ainda, outro efeito potencial algo perverso: o autor poderá ter a tendência para se alongar desnecessariamente na petição inicial, antecipando a resposta às exceções que preveja que possam vir a ser deduzidas, como forma de escapar ao debate oral. É o que refere LAURINDA VITÓRIA GEMAS, “A Revisão do Código de Processo Civil”, Revista Eletrónica de Direito, n.º 3, 2018, Editorial, p. 5.

[7] L. VITÓRIA GEMAS, ob. cit., loc. cit.

[8] Sob pena de se desaproveitar a réplica: esta seria usada para resolver menos questões do que as que potencialmente poderia resolver, promovendo não a celeridade, mas o atraso do processo. V., a título de exemplo, “O papel da réplica…”, cit., G. LOUREIRO GOMES, p. 41.

[9] Neste sentido, também ABRANTES GERALDES e Outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p. 692. Em sentido contrário, que configura posição maioritária, v., entre todos, LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, p. 605).

[10] Para ilustração, veja-se o Ac. do TRL de 26/10/2017 (Rel. M.ª Teresa Albuquerque), que entende que recai sobre o autor o ónus de impugnação quando aproveita a réplica para resposta às exceções deduzidas pelo réu, confrontado com o Ac. do TRE de 11/06/2015 (Rel. Mata Ribeiro), que nem sequer admite o aproveitamento da réplica pelo autor para responder às exceções deduzidas pelo réu na sua contestação.

[11] Caso estivéssemos perante um dos cenários do artigo 584.º CPC, na redação proposta.

[12] Que se consubstancia, precisamente, na análise casuística das regras processuais com o intuito de verificar, em função das especificidades do caso, se a forma prevista na lei é a mais adequada e eficiente.

[13] Para além disto, nem todos os processos serão complexos, seguramente fazendo sentido, em alguns deles, a dispensa do momento processual formal de resposta às exceções (que se revelem simples).